domingo, 29 de junho de 2014

INVERNIA

Traz o vento do mar tempestades escuras
e canta ladainhas de Inverno nos pinhais:
faz noite - dia e noite - em todas as casas.

Passa um gemido pela costa - tá mar !
(Só nos peitos rugem marés-cheias de largada,
só os olhos são barcos a navegar...)

E todo o Inverno, de cabeça tombada
como barco inútil varado de mágoa,
fica na praia um pescador enorme:
- tem um pé na areia, o outro na água,
nas mãos uma sardinha podre
e nos olhos o sal de todos os mares!...

MANUEL da FONSECA
(1911-1993)

sábado, 28 de junho de 2014

À CHEGADA DOS DIAS GRANDES.

Da luva lentamente aliviada
a minha mão procura a primavera
Nas pétalas não poisa já geada
e o dia é já maior que ontem era

Não temo mesmo aquilo que temera
se antes viesse: chuva ou trovoada
é este o Deus que o meu peito venera
Sinto-me ser eu que não era nada

A primavera é o meu país
Saio à rua sento-me no chão
e abro os braços e deito raiz

E dá flores até a minha mão
Sei que foi isto que sem querer quis
e reconheço a minha condição.

RUY BELO
(1933-1978)
A PRIMAVERA

Pouco sabemos sobre a Primavera!

Mas sabemos que as árvores reverdecem,
navios dançam sobre vagas curtas
e às janelas abrem-se os sorrisos
que adoçam os olhares e as manhãs.

Sabemos que o amor vem dos telhados
para ceifar os restos da agonia
e no ar límpido que anuncia o Verão
a coragem ganha alento, novos ritmos.

Sabemos que são fáceis as viagens
e o lançar de escadas sobre o abismo;
que os ventos são amenos e é possível
com um sopro afastar o silêncio e a angústia.

Sabemos que um relógio quebra a inércia
e ordena que se queimem os arquivos;
que há pássaros e peixes que perfuram
a rede com que o cerco nos limita.

Sabemos que então se lavra a terra
onde germina o pão e os lilases
e é doce repousar sobre os teus seios
— primaveras também, esperança, vida...

EGITO GONÇALVES
(1920-2011)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

PARA RECITAR ANTES DE DORMIR

Eu queria cantar dentro de alguém
sentar-me junto de alguém e estar aí.
Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
e acompanhar-te ao despertares e ao amanheceres.
Queria ser o único na casa
a saber: a noite estava fria.
E queria escutar dentro e fora
de ti, do mundo, da floresta.
Os relógios chamam-se anunciando as horas
e vê-se o fundo do tempo.
E em baixo ainda passa um estranho
e acirra um cão desconhecido.
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,
muito abertos, pousaram em ti;
e prendem-te docemente e libertam-te
quando algo se move na escuridão.

 
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)
Trad. de Maria João Costa Pereira.


domingo, 22 de junho de 2014

O INIMIGO

Foi medonha tormenta a minha mocidade,
Aqui e além cortada por brilhantes sóis;
A chuva e os trovões fizeram tais estragos
Que poucos frutos rubros no jardim me sobram.

E eis-me já em pleno outono das ideias,
quando é preciso usar os ancinhos e a pá
Pra arranjar outra vez a terra, após a cheia,
Onde a água escavou, quais tumbas, grandes valas.

E quem sabe se as flores que eu sonho, renovadas,
Poderão encontrar nessa areia lavada
O místico alimento que lhes dê vigor?

Ó dor! Ó minha dor! O tempo engole a vida,
E o que nos rói o peito, esse obscuro Inimigo,
Com o sangue que perdemos cresce e ganha força!

Charles Baudelaire
(1821-1867)
In "As Flores do Mal"
Trad. de Fernando Pinto do Amaral.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

  ALTO MAR
 
 
Quando estiver no alto mar e tudo
for água à minha volta, água salgada,
atirarei a vida borda fora.
Quando os meus olhos só puderem ver
a espantosa quantidade de pranto
que constituiu os mares deste mundo,
atirarei a vida borda fora.
Entre esses biliões e biliões
de lágrimas vertidas por alguém,
atirarei a vida borda fora.
E que os inexpressivos tubarões
destruam com os seus dentes o que fui


Amalia Bautista
In "Estou Ausente"
Trad. de Inês Dias

domingo, 15 de junho de 2014

 DE AGORA EM DIANTE


Como depois de um sonho,
não acertaria
ao dizer em que instante aconteceu.
Chamavam.
Algo, já começado, não admitia espera.
Senti-me estranho no começo,
reconheço-o - tantos anos
que passaram, como se na lua…
Dizer exactamente o que buscava,
qual foi minha esperança, não consigo
dizê-lo agora,
porque num instante
determinado tudo vacilou: chamavam.
E senti-me próximo.
Um pouco de ar livre,
algo tão natural como um rumor
cresce se se escutar de repente.

Mas desde agora será o mesmo sempre.
Porque de súbito o tempo ficou cheio
e não dá para mais. Cada manhã
traz, como diz Auden, verbos irregulares
que é preciso aprender, ou decisões
custosas, e que aguardam exame.

Ainda
há quem conte comigo. Amigos meus,
ou melhor: companheiros, precisam,
querem o mesmo que eu quero,
e querem-me a mim também, tal
como eu me quero.

De modo que mal posso recordar
o que é feito de vários anos de minha vida,
ou aonde ia eu quando acordei
e não me vi sozinho.

Jaime Gil de Biedma
(1929-1990)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.


sábado, 14 de junho de 2014


ESTA MÃO QUE ESCREVE A ARDENTE MELANCOLIA DA IDADE.


(a carta da paixão)



Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Heldre
"Ofício Cantante"
Poesia Completa
(2009)

SOMOS FOLHAS ONDE DORMEM

Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
Cada ave se transforma noutro ser

 Eugénio de Andrade
(1923-2005)
DISCURSO AO PRÍNCIPE DE EPAMINONDAS, MANCEBO DE GRANDE FUTURO.


Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão      a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem

Mário Cesariny
(1923-2006)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

E SÓ AGORA PENSO

E só agora penso:
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso.
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
─ cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo
fundo e amargo espelho velho:
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente
o mesmo.

Herberto Helder
In "A Morte sem Mestre"
Porto Editora
2014

quarta-feira, 11 de junho de 2014

 TRAGO NAS MÃOS


Trago nas mãos o calor
Que deponho a cada instante
No teu rosto que aspira a primavera que se pisa no chão
E espera o outono das folhas e dos caminhos
E desce comigo ao sabor
Que à terra dá cada breve estação

Trago-te o calor e as mãos inteiras
E nos olhos o horizonte dos nevoeiros no enredo das
....florestas
Das vinhas colhidas pêlos amantes reunidos à beira
....das manhãs
E dos barcos e das pombas em planícies sem trincheiras

Trago para nós a largura das terras e do mar
Onde se perpetue o amor dos homens
Na paz de cada olhar


Orlando da Costa
(1929-2006)
 POEMAS DE DESILUSÃO E DE REVOLTA -III


Porquê
a expiação
de um mal que não cometemos?

Porquê
arrastar sempre a grilheta
de um crime que nunca foi?

Porquê?
andar conformado, submisso,
dando a desculpa a si próprio
da explicação de tudo
numa história, aliás bela,
mas estranha,
de serpentes e maçãs...

João José Cochofel
(1919-1982)


domingo, 8 de junho de 2014

POEMAS DE DESILUSÃO E REVOLTA - I

Outra vez este desapego de tudo.
Outra vez
este olhar indiferente para tudo:
não encontrar na vida uma razão de viver.

Triste
encosto-me na janela
e olho a natureza livre.

Talvez valesse a pena ser árvore...

Talvez valesse a pena ser cão.

Tudo
menos andar amarrado uma vida inteira
aos preconceitos inúteis
duma civilização caduca.

João José Cochofel
(1919-1982)
CONQUISTA

Bastou a gota luminosa da tua presença
a transfigurar-me o espaço coalhado e morno
dos sonhos que apodrecem sem que ninguém os visite
em presença física.
Isso bastou.

Hoje, a recordação dessa hora
apenas canta no pinheiral batido pelo Leste.
Mas ficou-me nos olhos o sinal
de quem alguma vez escutou
a chamada subterrânea da vida.

João José Cochofel
(1919-1982)

sábado, 7 de junho de 2014

DÓI-ME QUEM SOU:

Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento.
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.

Numa amargura artificial consisto
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.

Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.

Fernando Pessoa
(1888-1935)
NÃO.

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.

Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...

Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...

A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

Álvaro de Campos / Fernando PESSOA
(1888-1935)
O SEU LUGAR FIEL.

Fundem-se os arvoredos e as nuvens
e o sol neles transparece a sua paz.
A harmonia do abraço é tão profunda
que até o mar a quer gozar também,
o mar que está distante e se aproxima,
que já se ouve pulsar e já rescende.

O cerco universal vai-se apertando,
e em toda a hora azul não há mais nada
que a nuvem, que a árvore, que a onda,
sínteses da glória zenital.
O fim está no centro. E a eternidade
sentou-se já aqui, seu lugar fiel.

Para isto viemos. (Tudo o mais
cai, pois era luz efémera).
E todos os destinos aqui saem,
aqui entram, aqui sobem, aqui estão.
Tem a alma um descanso de caminhos
que chegaram ao seu único final.

Juan Ramón Jimenez
(1881-1958)
Trad. de José Bento.
A MORTE BELA


Que me vais magoar, morte?
Não me faz doer a vida?
Porque hei-de ser mais ousado
para o viver exterior
que para o fundo morrer?

A terra, que é mais que o ar?
Porque nos há-de asfixiar,
porque nos há-de cegar?
porque nos há-de esmagar,
porque nos há-de calar?

Porque morrer há-de ser
o que chamamos morrer,
e viver só o viver,
o que calamos viver?
Porque o morrer verdadeiro
(o que calamos morrer)
não há-de ser doce e suave
como o viver verdadeiro
(o que chamamos viver?)

Juan Ramón Jimenez
(1881-1958)
Prémio Nobel 1956
Trad. de José Bento
In "Antologia Poética)

terça-feira, 3 de junho de 2014

SOMOS FOLHAS BREVES ONDE DORMEM

Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "As Mãos e os Frutos"

segunda-feira, 2 de junho de 2014

DORMIR

Dormir, sim,
quando o silêncio
dói. Mas nunca
se dorme quando
o amor
é uma insónia. Ninguém
ama de olhos
fechados.

Albano Martins
In "Palinódias, Palimpsestos"
TELEOLOGIA

Atravessamos perigos sem saber.
Abismos.
Condores.
Causas sinistras.

Nos intervalos cíclicos votamos
seguir em frente.

Que fazer, não fazer
nestes compromissos
a que nos entregamos?

Perigos não previstos
surgem nos abismos
da realidade.

Sinistras aves, a verdade simples,
descem abismos
sempre quando somos.

Ruy Cinatti
(1915-1986)
DENTRO DE MIM

Abarco todo o horizonte
Dentro de mim há só água,
água estagnada, dos charcos
represos da minha mágoa.

Tenho tudo nos meus olhos,
as cores todas, e ponho
um leve acento de angústia
nas margens tristes do sonho.

Dentro de mim só há sombra.
O que possa acontecer
vai rasgando espaços brancos
nas fronteiras do meu ser.

Albano Martins

domingo, 1 de junho de 2014

POEMAS DE DESILUSÃO E DE REVOLTA

IV


Isto
 de ser o que se não é,
de andar sempre a mentir
(quantas vezes a nós próprios!)
tiranizados,
forçados,
chegando mesmo a esquecer
por vezes,
que somos bois debaixo de uma canga:
Isto,
juro-vos,
ainda há-de acabar.

João José Cochofel
(1919-1982)
In "Descoberta"
Coimbra Editora
(1945)
JÁ NÃO ME DÁ AMARGOS DE BOCA

Já não me dá amargos de boca
o mundo.
Sei o que quero desta vida oca:
não me confundo.

Mágoas que chorei,
mesmo sentidas:
falta de sol,
álcool sobre as minhas feridas.

Excesso de lembrança,
dor que outra dor levanta.
Xadrez de quem vive sozinho
e não canta

João José Cochofel
(1919-1982)
FRUTO DE SOL NA MINHA BOCA

Fruto de sol na minha boca.
-- Terra tão vasta
e a vida tão pouca!

De Inverno e de Verão faça sol de Agosto.
-- Fruto na boca
deixou o seu gosto.

Assim deito meus olhos à flor do mundo.
Nem me peçam mais:
os lagos serenos têem menos fundo.

João José Cochofel
(1919-1982)
In "Descoberta"
Coimbra (1949).