domingo, 20 de abril de 2014

AI SE SÊSSE.

Se um dia nois se gostasse
Se um dia nois se queresse
Se nois dois se empareasse
Se juntim nois dois vivesse
Se juntim nois dois morasse
Se juntim nois dois drumisse
Se juntim nois dois morresse
Se pro céu nois assubisse
Mas porém acontecesse de São Pedro não abrisse
a porta do céu e fosse te dizer qualquer tulice
E se eu me arriminasse
E tu cum eu insistisse pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvês que nois dois ficasse
Tarvês que nois dois caisse
E o céu furado arriasse
E as virgi toda fugisse

Zé da LUZ.
(1904-1965)

sábado, 19 de abril de 2014

ENIGMA.


No fundo de tudo quanto pensamos
Há a caverna do que nós vemos
Sonhos lhe bóiam na sombra aberta.
Uma árvore vela-a com rede-ramos
Terá de ramos luzindo pomos
Pomos-estrelas na noite deserta.

Por trás das costas do visto mundo
Por trás de nós se sonhamos ver,
Fogem de um onde ladeando estar,
Ramos sem sede cruzando o fundo
Do pensamento e caverna ser
Com sonhos boiando no cavernar.

Quadro — boiando do fundo da alma,
Com pomos luzindo na árvore-parte,
Com o segredo por trás de aquém...
Brilha um instante na luz sem calma
Como um relâmpago de ‘standarte,
E em tudo isto não há ninguém.

Fernando PESSOA
(1888-1935)

sábado, 5 de abril de 2014

ESTA VELHA ANGÚSTIA:

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha.
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar e fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a dinvidade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos / Fernando PESSOA
(1888-1935)
PEDE TRÊS DESEJOS.

Ver a aurora contigo,
ver contigo a noite
e ver de novo a aurora
na luz do teu olhar.

Amalia Bautista
In "Estou Ausente"
CANSAÇO.

Não quero amar nem ser amado…
Quero ficar estúpido e cansado
A este canto, e só.

Batido pelo vento,
Sem conforto, sem pão, sem alegria.

E se eu chamar não venhas.
(Que eu não hei-de chamar-te…)

No entanto, Amor, não saias para longe.
É que eu posso, apesar de tudo quanto digo,
Chamar por ti.
E era tão bom saber que me escutavas!...
E era tão bom sentir que perdoavas!...

Sebastião da Gama
(1924-1952)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

RETRATO

Neste retrato
estás a olhar para diante, para sempre, para muito além,
sabe-se lá por que saudade, por que mágoa, mas além,
onde talvez houvesse um cofre aberto para os sonhos que devastei.
pérolas queimadas,
pérolas negras do medo e da paixão,
metais preciosos roubados às forjas de Deus,
tudo o que neste retrato desenha,
com incandescente ferro e pincéis,
ardor, fúria, tenacidade,
mas nunca a renúncia,
nunca as marcas do luto e da febre sobre a lua amarela.

Neste retrato eras tu – e não poderia ser eu? ­
com o tempo por cima, a passar impiedosamente,
o tempo do declínio, o tempo do pó,
tudo o que hoje se comprime nesta moldura de prata,
ao centro da mesa, tristemente.

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948)
CONCERTO PARA VIOLINO E ORQUESTRA DE MAX BRUCH.


Das cordas do violino dir-se-á
que não foram feitas
para prender. Nunca
os sons
foram tão soltos, a música
tão livre. Presos,
agrilhoados ao esplendor
do arpão sonoro, apenas
os sentidos.

Albano Martins
In "Orfeu Canta"