sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Juan Ramón Jiménez


A COR DA TUA ALMA


Enquanto eu te beijo, o seu rumor
nos dá a árvore, que se agita ao sol de ouro
que o sol lhe dá ao fugir, fugaz tesouro
da árvore que é a árvore de meu amor.

Não é fulgor, não é ardor, não é primor
o que me dá de ti o que te adoro,
com a luz que se afasta; é o ouro, o ouro,
é o ouro feito sombra: a tua cor.

A cor de tua alma; pois teus olhos
vão-se tornando nela, e à medida
que o sol troca por seus rubros seus ouros,
e tu te fazes pálida e fundida,
sai o ouro feito tu de teus dois olhos
que me são paz, fé, sol: a minha vida!

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

domingo, 23 de outubro de 2011

Armindo Rodrigues


A VIDA É FEITA DE INSTANTES


A vida é feita de instantes
em constante oposição.
Nenhum é como foi dantes.
Foram-se uns, outros virão.
Em que é o homem igual,
a não ser em nunca o ser?
Quem sabe o que o mundo vale
mais tem de que se valer.
Uma esperança se quebranta?
Outra toma a dianteira.
O que mais na vida espanta
é a própria vida inteira.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

José Gomes Ferreira



CABARÉ-IV


Todos os punhais que fulgem nos gritos,
todas as fomes que doem no pão,
todo o suor que luz nas estrelas,
todas as cruzes no peso dos braços,
todos os crimes nas penas das pombas,
todas as lanças nos dedos de reza,
todas as feridas que cheiram nos cravos,
todas as sedes com asas nas nuvens,
toda a inveja na limpidez dos espelhos,
todos os soluços para ressuscitar os filhos mortos,
todos os desejos nos alçapões do Frio,
todos os assassinos que andaram ao colo das mães,
todos os olhos pegados nas jóias das montras,
todos os atestados de pobreza com lágrimas de carimbo,
todos os murmúrios do sol, no quarto ao lado, à hora da morte...

Tudo, tudo, tudo
se condensou de repente
numa nuvem negra de milhões de lágrimas
a humilharem-me de ternura
- eu que quero ser alheio, duro, indiferente...

... enquanto os Outros dançam, cantam, bebem,
vivem, amam, riem, suam
neste pobre planeta
magoado das pedras e dos homens
onde cresceu por acaso o meu coração no musgo
aberto para a consciência absurda
deste remorso sem sentido.

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

Emily Dickinson


NÃO SOU NINGUÉM! QUEM ÉS TU?


Não sou Ninguém! Quem és tu?
Também - tu não és - Ninguém?
Somos um par- nada digas!
Banir-nos-iam - não sabes?

Mas que horrível - ser-se Alguém!
Uma Rã que o dia todo -
Coaxa em público o nome
Para quem a admira - o Lodo.

Emily Dickinson
(1830-1886)
Trad. de Jorge de Sena.

domingo, 16 de outubro de 2011

Jorge Luis Borges


SÃO OS RIOS


Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

Vicente Huidobro


MARINHEIRO



Aquele pássaro que voa pela primeira vez
afasta-se do ninho olhando para trás

Com o dedo nos lábios
Chamei-vos

Inventei jogos de água
na copa das árvores

Tornei-te a mais bela das mulheres
tão bela que enrubescias nas tardes

A lua afasta-se de nós
e lança uma coroa sobre o pólo

Fiz correr rios
que nunca existiram

De um grito ergui uma montanha
e em volta dançámos uma nova dança

Cortei todas as rosas
das nuvens do Este

E ensinei a cantar um pássaro de neve

Caminhemos sobre os meses desatados

Sou o velho marinheiro
que cose os horizontes cortados

Vicente Huidobro (1893-1948)
Tradução: José Bento
In "Rosa do Mundo 2001 poemas para o futuro"

Saúl Dias


JÁ FOSTE RICO FORTE E SOBERANO


Já foste rico e forte e soberano,
Já deste leis a mundos e nações,
Heróico Portugal, que o gram Camões
Cantou, como o não pôde um ser humano!

Zombando do furor do mar insano,
Os teus nautas, em fracos galeões,
Descobriram longínquas regiões,
Perdidas na amplidão do vasto oceano.

Hoje vejo-te triste e abatido,
E quem sabe se choras, ou então,
Relembras com saudade o tempo ido?

Mas a queda fatal não temas, não.
Porque o teu povo, outrora tão temido,
Ainda tem ardor no coração.

Saúl Dias
(1902-1983)
In "Dispersos (Primeiros Poemas)"

Agostinho da Silva


QUERIA QUE OS PORTUGUESES


Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor

sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal

todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler

teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura

e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale

até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião

que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira

alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto

se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia

deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.

Agostinho da Silva
(1906-1994)
In "Poemas"

Si la bala me da (Canções da Guerra Civil Espanhola)

Juan Ramón Jiménez


À SOLIDÃO


Solidão coroada de rosas, quem pudera
aprisionar teu corpo de sol e de harmonia;
estar dentro de ti toda esta primavera
de sangue, e folhas secas e de melancolia!

Que palpitasse, em sonho, teu coração sonoro
sobre o meu coração sequioso de ideais;
minha palavra fosse uma palavra de ouro
de teus inesgotáveis e puros mananciais!

Ai! Quem, iluminando a sombra alucinada
que de espinhos coroa minha pálida tristeza,
pudesse ser teu amor, oh deusa coroada
de rosas, solidão, — tu que és mãe da beleza!

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Juan Ramón Jiménez


ENCONTRO DE DUAS MÃOS


Encontro de duas mãos
que procuram estrelas,
nas entranhas da noite!
Com que imensa pressão
se sentem suas brancuras imortais!

Doces, ambas esquecem
sua busca sem sossego,
e encontram, um instante,
em seu cerrado círculo
o que buscavam sós.

Resignação de amor,
tão infinita como impossível!

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

CRISE?...Crise é quando uma rodela de limão (na coca-cola) custa mais do que uma ação do BCP!...

Lluís Llach - Abril 74

sábado, 15 de outubro de 2011

Pi de la Serra - Fills de Buda

Vitorino canta António Lobo Antunes

António Lobo Antunes


UM HOMEM COM GRIPE



Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão-de-ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

António Lobo Antunes

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Luis Cernuda


UNS CORPOS SÃO COMO FLORES



Uns corpos são como flores,
Outros como punhais,
Outros como fitas de água;
Mas todos, cedo ou tarde,
Serão queimaduras que em outro corpo aumentem,
Convertendo pelo fogo uma pedra num homem.


Mas o homem agita-se em todas as direcções,
Sonha com liberdades, compete com o vento,
Até que um dia se apaga a queimadura,
Volta a ser pedra no caminho de ninguém.


Eu, que não sou pedra, mas caminho
Que cruzam ao passar os pés nus,
Morro de amor por todos eles;
Dou-lhes meu corpo para que o pisem,
Mesmo que lhes leve a uma ambição ou a uma nuvem,
Sem que nenhum compreenda
Que ambições ou nuvens
Não valem um amor que se entrega.

Luis Cernuda
(1902-1963)
Trad. De José Bento
In "Antologia Poética"

sábado, 8 de outubro de 2011

Um pedido que deve ser atendido...


(Foto feita em Estreito-Casal dos Bernardos-Ourém)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sem comentários...

Vítor Matos e Sá


AUTOBIOGRAFIA


Estive convosco em muitas palavras.
Algumas levaram-me ainda mais perto.
Com outras fiquei apenas mais só.

De muitas não vi que rosto as guardava.
Por outras me dei a quem não pedia.
Onde foram mentira alguém me faltava.
Mas todas cumpri por quem me cumpria.

E passaram ardendo em novos combates,
cobriram silêncios, provaram mistérios,
fizeram amigos que nunca terei.

Por serem verdade me trazem aqui.
E quando as sonhais na vossa esperança,
Um irmão me procura por entre as cidades
com todos os rostos que perdi.

Vítor Matos e Sá
(1927-1975)
In "Esparsos"

Vitorino

Octavio Paz


MADRUGADA

Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
Ainda
estou vivo
No centro
de uma ferida ainda fresca.

Octavio Paz (México, 1914-1998)
Trad. de José Bento

José Régio


GRANDE GUERRA


Podes roubar-me o pão!
A Fome, não.
A boca, sim: come ou não come.
Porém, como roubar a inextinguível Fome?

Inextinguível, porque pede
Um pão que nos excede:
Um pão que ninguém dá
Nem tirará.

Podes furtar-me todos os proveitos,
Expropriar-me, até, dos meus direitos!
Aos ventos darei eu meus gritos e canções,
E os ventos lhes farão mil edições.

Podes calar-me com mordaças,
Tu, que és mortal... e passas.
Passas, ao passo que o meu grito
Percute ao longo do Infinito...

Podes acorrentar-me às rochas das montanhas,
Pôr abutres roendo-me as entranhas!
Como das flores espalha o pólen,
O vento espalhará o sémen do Homem...

Podes cobrir-me o nome de impropérios;
Tu, que és senhor de impérios,
Negar ao pobre o seu só bem: a fama
Não brilha o sol na própria lama?

Podes tirar-me a paz, a saúde, e a própria vida.
Ai pedra sepulcral assaz fendida!
Que ao Cristo lhas tiraram,
Perderam-se e O ressuscitaram.

Podes, ás minhas cinzas, recobri-las
De terra e pedras; difundi-las
Pelos desertos sem oásis!
Não sabes que é mortal tudo o que fazes?

És sempre o mesmo, tu, cujas razões supremas
São mordaças, grilhões, vendas, algemas.
Mártir, rebelde, poeta, - também eu
Sou sempre o mesmo Um que não morreu.

Porquê? Porque ao morrer, dos céus,
Lhe diz o próprio Deus:
“Filho, vem até mim!
“A História principia onde eles põem: fim.”

José Régio
(1901-1969)
In "Cântico Negro"

Fernando Pessoa


SONHO. NÃO SEI QUEM SOU.


Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Fernando Pessoa
(1888-1935)
In "Cancioneiro"

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro


EU SOU DO TAMANHO DO QUE VEJO.


Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro
(1888-1935)