domingo, 28 de agosto de 2011

Sidónio Muralha


EPITÁFIO


A Pátria, de olhos sem fundo como dois buracos,
vela o teu corpo e põe-te uma promessa nas mãos frias...
- tu que foste a força dos fracos,
tu que foste maior que todas as poesias.
Tu, puro e oculto como as cisternas de água,
tu que eras presente e invisível como a aragem,
tu que continuas a ligar-nos pela mágoa
como sempre o fizeste pela coragem.

Por todo o sofrimento, por todas as desgraças,
e em nome das madrugadas que rasgam as vidraças,
a Pátria põe-te uma promessa nas mãos frias.

Largos versos irrompem no teu silêncio de granito,
e tu vives inteiro em cada grito,
tu que foste maior que todas as poesias.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"
(Edição de 1950)



Sidónio Muralha


ENCORAJAMENTO


... E a poesia lá vai - tão amada e detestada -
livre, como se marchasse nua contra o vento,
vai levar aos que se cansam da longa caminhada
a água pura e fresca do encorajamento.

E ela lá vai... Lá vai, e luta, quer queiram ou não,
contra a lassidão e a doença do sono,
e a quem tiver sede oferece a canção
do futuro sem grades e dos homens sem dono.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"
(Edição de 1950)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sidónio Muralha


APELO


Tu que nasceste e cresceste nesta época de não,
não dizeres o que gostas, não dizeres o que desgostas,
dá-nos teus versos todos surpresa e acusação
como os olhos de um homem apunhalado pelas costas!

Dá-nos teus versos descarnados e brutais,
escreve-os com suor no papel amarfanhado
- tira do teu silêncio todos os secretos vendavais
cercados de ameaças e de arame farpado!

Cada poema é um sulco a alargar o caminho,
o caminho dos homens com fome e sede de certezas
- e os teus versos, ao lado do pão e do vinho,
serão à noite servidos em todas as mesas.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Manuel Leal Freire


QUANDO

Quando os olhos cansam
E as pernas dançam

Quando as peles crescem
E os colhões descem

Quando o nariz pinga
E a piça minga

Não volte a dizer ainda
Que a missão é finda e bem finda.

Manuel Leal Freire
In "Trovas de Escárnio em Vernáculo"

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Eugénio de Andrade


ESTE PAÍS É UM CORPO EXASPERADO



Este pais é um corpo exasperado,
a luz da névoa rente ao peito,
a febre alta à roda da cintura.

O país de que te falo é o meu,
não tenho outro onde acender o lume
ou colher contigo o roxo das manhãs.

Não tenho outro, nem isso importa,
este chega e sobra para repartir
com os corvos – somos amigos.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mário Dionísio


CRER EM MILAGRES.


Crer em milagres
quem só crê em suas mãos
diagnóstico errado
de desejos vãos

É tão fácil planear
desenvolver acabar recomeçar
encontrar aquele tom de inquietação
que tranquiliza toda a gente

Mas essa luz que espero e me consome enquanto espero
este calor possível só feito de impossível
como viria aqui senão
miraculosamente?

Mário Dionísio
(1916-1993)
In " Poesia Incompleta"

sábado, 13 de agosto de 2011

Sidónio Muralha


VINGANÇA


Furiosos
Furiosos por não poderem controlar os amorosos,
nem poderem cercar de grades os vales e os montes
e vender copo a copo toda a água das fontes,
nem poderem vedar as estrelas aos artistas
e reservá-las aos turistas,
e não poderem monopolizar
o sol e o mar,
-na escuma da raiva a pena molharam
e depois decretaram.

E as ondas são altas e vigorosas nas praias
mas os homens tomam banho de saias.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens (1950)"

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Rosalia de Castro


PAZ, PAZ DESEJADA...


Paz, paz desejada:
para mim, onde está?
Talvez não hei-de tê-la...
Nem a tive jamais!

Sossego, descanso,
onde os hei-de encontrar?
Nos males que me matam,
na dor que me dão.

Paz, paz tu és mentira!
para mim não há!

Rosalia de Castro
(1837-1885)
In "Antologia Poética / Cancioneiro Rosaliano"

Rosalia de Castro


DIZEM ALGUNS...


Dizem alguns: Minha terra!
Dizem outros: Meu carinho!
E este: minhas lembranças!
E aquele: oh, meus amigos!
Todos suspiram, todos,
por algum bem perdido.
Eu só não digo nada.
Eu só não suspiro.
Que o meu corpo de terra
e o meu cansado espírito,
aonde quer que vá
vão comigo.

Rosalia de Castro
(1837-1885)
In "Antologia Poética / Cancioneiro Rosaliano)

Rosalia de Castro


NEGRA SOMBRA


Quando penso que te foste,
negra sombra que me assombras,
ao pé do meu travesseiro
tornas fazendo-me troça.

Quando imagino que és ida,
no sol mesmo te me mostras,
e tu és a estrela que brilha,
e tu és o vento que zoa.

Se cantam és tu que cantas;
se choram és tu que choras;
e és o murmúrio do rio
e és a noite e és a aurora.

Em tudo estás e tu és tudo,
p'ra mim e em mim mesma moras,
Nem me abandonarás nunca,
sombra que sempre me assombras.

Rosalia de Castro
(1837-1885)
in "Antologia Poética / Cancioneiro Rosaliano)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

João de Barros




AQUELE MAR

Aquele mar da minha infância,
bom camarada e meu irmão
a sua voz, o seu olor, sua fragrância
tanto os ouvi e respirei
que trago em mim o seu largo ritmo,
seu ritmo forte,
como se as praias onde espuma
quase me fossem
praias sem fim dentro de mim
ocultas praias, largas praias
do tumultuoso coração…

Aquele mar
meu confidente de horas idas
tudo escutava e adivinhava
do meu pueril e ingénuo anseio.
Nada sonhei que o não dissesse
– frémito de alma, grito ou prece –,
às madrugadas e aos poentes,
ao sol, às nuvens, ao luar,
ora nascendo, ora morrendo
nos longos, longos horizontes
em que se perdia o meu olhar…

Aquele mar
na calma azul, no temporal,
nunca mentia: era um só beijo,
hálito puro, largo harpejo
que me entendia e respondia
no seu inquieto marulhar…
Moço e menino, solitário,
rochas, falésias, areais
eu coroava-os de alegria
nos meus passeios matinais.
Ou nalgum barco pescador,
velas abrindo a todo o pano,
do oceano então era senhor,
largava a escota, navegava,
no vão desejo de aventuras,
que não chegava a realizar…
Mas era meu, e eu pertencia-lhe,
àquele mar,
era seu filho, escravo e dono,
sorria à sua Primavera,
amava a luz do seu Outono,
o vivo lume dos estios
a violência dos Invernos
longos clamores de temporais.
Aflito voo das gaivotas
junto das negras penedias,
também como ele me perdias,
nas tardes tristes e sombrias,
na bruma gélida das noites…
E a eternidade então ouvia
humano sonho sempre esquecido
na eterna voz que fala o mar.

João de Barros

(Figueira da Foz 4 de Fevereiro de 1881- Lisboa 25 de Outubro de 1960.)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

José Saramago


A TI REGRESSO, MAR, AO GOSTO FORTE

A ti regresso, mar, ao gosto forte
Do sal que o vento traz à minha boca,
À tua claridade, a esta sorte
Que me foi dada de esquecer a morte
Sabendo embora como a vida é pouca.

A ti regresso, mar, corpo deitado,
Ao teu poder de paz e tempestade,
Ao teu clamor de deus acorrentado,
De terra feminina rodeado,
Prisioneiro da própria liberdade.

A ti regresso, mar, como quem sabe
Dessa tua lição tirar proveito.
E antes que esta vida se me acabe,
De toda a água que na terra cabe
Em vontade tornada, armado o peito.

José Saramago
(1922-2010)

Mário- Henrique Leiria




À CATA DO VENTO

O cata-vento
tem obrigações legais
deve
catar o vento
portanto
quando o vento passa
diz-lhe logo atento
espera aí
preciso de te catar
mas o vento
sempre a passar
tem outras coisas
em que pensar
não está para ser
catado no ar
e vai passando
desatento
ao cata-vento
sem se importar
obrigado legalmente
a catar o vento
então
o cata-vento
senta-se no telhado
aporrinhado
e sem vento
para legalizar
o seu direito
de ser elemento
respeitado
pelos elementos

sentado no telhado
queixa-se
isto não é vida

Mário-Henrique Leiria
(1932-1980)

Sidónio Muralha


LITORAL


Neste mesmo local,
de olhos postos no mar,
- quantas mulheres de Portugal
se vieram sentar?

Quantas e quantas gerações aqui vieram
até à presente geração,
que lutaram, pescaram e comeram
sardinha com pão!

Neste mesmo local,
de olhos cansados no mar,
ai quantas, quantas mulheres do litoral
se vieram sentar...

Manhãs de tempestades despertaram,
homens e homens partiram,
mulheres enviuvaram
e de negro se vestiram...

E como prémio tiveram,
tiveram como pensão,
algumas frases piedosas que lhes deram
e nem sardinha com pão, nem sardinha com pão.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"
(1950)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Mário Dionísio


SANGUE IMPETUOSO


Sangue impetuoso,
não te submetas nunca!

Caminha, corre, salta!

Salta as barreiras por maiores que sejam.
Caminha por mais duros que sejam os caminhos.

Corre, salta!

És vida.
A vida está na tua marcha invulnerável,
na tua rota sem tréguas, sem limites, sem curvas, sem paragens,
na tua cavalgada de horizontes escancarados,
em teu grito selvagem.

Corre, salta!

E, se não te cumprires em mim,
não pares ainda, não cedas: corre!
Rasga à punhada as paredes de treva.
Salta e estilhaça os diques, as montanhas!

Salta nas veias de meus filhos ou meus netos;
segue.

Por maiores que sejam as barreiras,
por mais duros que sejam os caminhos,

caminha, corre, salta,
-rebeldemente, impetuosamente!

Mário Dionísio
(1916-1993)
In "Poesia Incompleta"

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Rosalia de Castro


EU NÃO SEI O QUE BUSCO...


Eu não sei o que busco eternamente
na terra, pelo céu e pelo ar;
eu não sei o que busco, mas é algo
que perdi não sei quando e não consigo achar
embora saiba que invisível habita
em tudo quanto posso ver e tocar.

Felicidade, não te acharei mais nunca
pelo ar, pelo céu ou pelo chão!
Embora saiba que existes
e não és um sonho vão!

Rosalia de Castro
(1837-1885)
In "Antologia Poética / Cancioneiro Rosaliano"

Rosalia de Castro


NA SUA ALMA LEVAVA UM PENSAMENTO...


Na sua alma levava um pensamento
de dúvida e pesar
tão grandes como o largo firmamento,
tão fundos como o mar.

Da sua alma no mais árido e profundo
fresca brotou de súbito uma rosa,
como brota uma fonte no deserto,
ou um lírio das gretas duma rocha.

Rosalia de Castro
(1837-1885)
In "Antologia Poética / Cancioneiro Rosaliano"

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Adriano Correia de Oliveira canta Urbano Tavares Rodrigues

Urbano Tavares Rodrigues




CANÇÃO DO SOLDADO NO CERCO DO PORTO

Sete balas só na mão
Já começa a amanhecer
Sete flores de limão
Para lutar até vencer
Sete flores de limão
Para lutar até morrer

Já estremece a tirania
Já o sol amanheceu
Mil olhos tem o dragão
Há chamas de oiro no céu

Abre no peito o luar
Companheiros acercai-vos
Arde em nós a luz do dia
Companheiros revezai-vos

Já o rouxinol cantou
Tomai o nosso estandarte
No seu sangue misturado
Já não há desigualdade

Sete balas só na mão
Já começa a amanhecer
Sete flores de limão
Para lutar até morrer.

Urbano Tavares Rodrigues
In "O Nosso Amargo Cancioneiro"

Sidónio Muralha


INTERROGAÇÃO E RESPOSTA


...E todas as tardes, e todas as manhãs
e todas as noites os homens morriam...
choravam as mães, as mulheres, as irmãs,
choravam os olhos que já os não viam...

E em todos os campos, e em todos os mares,
e em todas as ruas, e em todos os portos,
nas cadeiras vazias de todos os lares
perguntam os mortos porque foram mortos.

A que sol murcharam as promessas largas?
Que neblina esconde a terra prometida?
Que marcou a cinza tantas horas amargas,
no imenso quadrante do relógio da vida?

Palavras moldadas no barro do engano,
promessas de tudo trocadas em nada,
frases apagadas como apaga o oceano
os passos de um homem na areia molhada.

...E em todos os campos, e em todos os mares,
e em todas as ruas, e em todos os portos,
nas cadeiras vazias de todos os lares
perguntam os mortos porque foram mortos...

E nós que sabemos a verdade, e sentimos
para lá das falas das razões, dos motivos,
-provemos aos mortos que não os traímos,
Devolvendo aos vivos a terra dos vivos.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"
(Conforme o original publicado em 1950)

Sidónio Muralha



PEQUENOS DEUSES CASEIROS



Pequenos deuses caseiros que brincais aos temporais,
passam-se os dias, semanas, os meses e os anos
e vós jogais, jogais
o jogo dos tiranos.

Pequenos deuses caseiros, cantai cantigas macias
tomai vossa morfina, perdulai vossos dinheiros,
derramai a vossa raiva, gozai vossas tiranias,
pequenos deuses caseiros.

Erguei vossos castelos, elegei vossos senhores,
espancai vossos criados, violai vossas criadas,
e bebei, bebei o vinho dos traidores
servido em taças roubadas

Dormi em colchões de penas, dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem, alteai vossas janelas,
e trancai vossas portas, pequenos deuses caseiros,
e reforçai, reforçai as sentinelas.

Que é sempre um dia a menos este dia que passa,
e cada dia a mais aumenta o preço da traição,
e cada dia a mais aumenta o preço da desgraça,
e a nossa moeda não é piedade nem perdão
porque foi temperada com todas as lágrimas da raça.
Não, pequenos deuses caseiros, não!

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"
(Conforme o original de 1950).

Reinaldo Ferreira


DESDE QUANDO ALGUMA VEZ ANOITECEU


Desde quando alguma vez anoiteceu
E à angústia de que a terra se cobriu
Só pasmo nas esferas respondeu;
Desde quando alguma flor emurcheceu
E a criança que válida se ria
De repente calada apodreceu;
Desde quando a algum estio sucedeu
Um outro outono e a árvore se despiu
E a primeira cabeça encaneceu;
Desde quando alguma coisa que nasceu
Sem que o pedisse, sem remédio se degrada
E acaba, sob a terra que a comeu,
Dispersa entre os átomos dispersos,
Se acumula a tristeza deste dia
E a razão destes versos.

Reinaldo Ferreira
(1922-1959)

Reinaldo Ferreira


É PELA TARDE, QUANDO A LUZ ESMORECE.


É pela tarde, quando a luz esmorece
E as ruas lembram singulares colmeias,
Que a alegria dos outros me entristece
E aguço o faro para as dores alheias.

Um que, impaciente, para o lar regresse,
As viaturas que se cruzam cheias
Dos que fazem da vida uma quermesse,
São para mim, faminto, odor de ceias.

Sentimento cruel de quem se afasta,
Por orgulho repele, e se desgasta
No esforço de fugir à multidão.

Mas castigo de quem, por imprudente,
Já não pode deter-se na vertente
Que vai da liberdade à solidão.

Reinaldo Ferreira
(1922-1959)
In "Um voo cego a nada"

Rosalia de Castro


ERA CRIANÇA E JÁ PERDERA...


Era criança e já perdera
o hábito de chorar;
a miséria seca a alma
e até os olhos faz secar.
Era criança e parecia
pelos feitos velho já.

Experiência de mendigo!
Precoce és como o mal,
implacável como o ódio,
como a verdade brutal!

Rosalia de Castro
(1837-1885)
In "Antologia Poética / Cancioneiro Rosaliano")

Rosalia de Castro


AMO-TE...PORQUÊ ME ODEIAS?...


Amo-te...Porquê me odeias?
-Odeio-te...Porquê me amas?
Segredo é este o mais triste
e misterioso das almas.

Mas é verdade...Verdade
dura e nos chicoteia!
-Odeias-me porque te amo;
amo-te porque me odeias.

Rosalia de Castro
(1837-1885)
in "Antologia Poética / Cancioneiro Rosaliano)