quarta-feira, 31 de março de 2010

Octavio Paz nasceu a 31 de Março de 1914


Silêncio

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.

Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli

segunda-feira, 29 de março de 2010

Pablo Neruda


AMIGO


Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.


Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.

Bebe do meu cântaro se tens sede.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.

Amigo,
se tens fome come do meu pão.


Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelo muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.

Sorris-te - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu ta dou... Menos aquela lembrança...

... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...

Pablo Neruda, in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage

Fel de Cão completa 1 ano de idade.


Foi um ano em que dediquei algum tempo ao "Fel de Cão"...Aproveitei para ler e reler muita coisa...espreitei e troquei opiniões com outras pessoas...valeu a pena!

O Joelho do Eusébio

A Borracha do Rocha.

domingo, 28 de março de 2010

César Vallejo



UM HOMEM PASSA COM UM PÃO AO OMBRO

Um homem passa com um pão ao ombro
- Vou escrever, depois, sobre o meu duplo?

Outro senta-se, coça-se, tira um piolho do sovaco, mata-o
- Com que desplante falar da Psicanálise?

Outro entrou em meu peito com um pau na mão
- Falar, em seguida, de Sócrates ao médico?

Um coxo passa dando o braço a um menino
- Vou, depois, ler André Breton?

Outro treme de frio, tosse, cospe sangue
- Convirá não aludir jamais ao Eu profundo?

Outro busca no lodo ossos e cascas
- Como escrever, depois, sobre o infinito?

Um pereiro cai de um telhado, morre, já não almoça
- Inovar, em seguida, a metáfora, o tropo?

Um comerciante rouba um grama no peso a um freguês
- Falar, depois, da quarta dimensão?

Um banqueiro falsifica o seu balanço
- Com que cara chorar no teatro?

Um pária dorme com um pé às costas
- Falar, depois, a ninguém de Picasso?

Alguém vai num enterro a soluçar
- Como em seguida ingressar na Academia?

Alguém limpa uma espingarda na cozinha
- Com que desplante falar do mais além?

Alguém passa a contar pelos dedos
- Como falar do não-eu sem dar um grito?

_________________
Poemas extraídos da edição:
"Antologia Poética de César Vallejo -
seleção, tradução prólogo e notas, José Bento,
ed. Relógio D'Água, Lisboa, 1992

sábado, 27 de março de 2010

Iuri Gagarin morreu a 27 de Março de 1968


Nos anos 60 tinha muitos "heróis" de entre eles...Eusébio da Silva Ferreira e Iuri Gagarin...

sexta-feira, 26 de março de 2010

Nicolas Guillen

Nicolas Guillen

José Gomes Ferreira


Poema

Um dia saberás que nasceste como eu
com a solidão nos olhos
atados na luz
a gritar no pesadelo de uma ilha.

E a ver a morte crescer lentamente
no teu corpo
- viva.

José Gomes Ferreira,"Poesia IV"

quarta-feira, 24 de março de 2010

José Gomes Ferreira


TU,PIEDADE


Tu, piedade,
que vens lá do fundo
da raiz do instinto
e és capaz de incendiar o mundo
para aquecer um faminto.

Tu que me embalas
com a voz rouca
da cólera do amor
que deixa na boca
o frio das balas
e todo o amargor
da outra sede
que só se sufoca
com pus e suor
- e os dedos sangrentos
na cal da parede
dos fuzilamentos.

Tu que me afagas
como quem estrangula
com mãos de bandido...
E beijas as chagas
com lábios de gula
e chumbo derretido.

Tu que só amas
a dor com esgares,
nos gritos das chamas,
nas cordas dos potros,
na cruz do Rabi
- para assim chorares,
através dos outros,
o que dói em ti.

Tu que me levas
de rastos na estrada
ao fundo da rampa
onde só há trevas
- raiz misturada
de estrelas e trampa.

Tu que descobres
toda a secura
de cinzas nos frutos
que há na ternura
de chorar os pobres
de olhos enxutos.

Tu, piedade,
mãe de todas as mães
e de todos os vícios,
que lambes como os cães
os vergões dos cilícios.

Dá-me lágrimas reais
na cara a correr
como se a pele sangrasse...
Dessas que deixam sinais
e fazem doer
por dentro da face.

Dá-me lágrimas geladas
como dedos nos gatilhos
em noites de lobos...
Que eu quero baptizar com elas
todos os filhos
da fúria das cadelas,
dos réprobos e das ladras,
de estupros e de roubos.

Dá-me o ódio frio
que vem lá do fundo
do bafio das prisões
- ódio que há-de salvar o mundo,
num dia de lágrimas nos olhos,
quentes como corações.


José Gomes Ferreira, 1945 - "Poesia III",1961

Pablo Neruda


TALVEZ TENHAMOS TEMPO


Talvez tenhamos tempo ainda
para ser e para ser justos.
De uma maneira transitória
agonizou ontem a verdade
e embora o saiba todo o mundo
todo o mundo bem o disfarça:
ninguém mandou algumas flores:
ela morreu e ninguém chora.

Entre o esquecimento e a aflição
um pouco antes do funeral
teremos a oportunidade
da nossa morte e nossa vida
para sair de rua em rua,
de mar em mar, de porto em porto,
de cordilheira em cordilheira,
e sobretudo de homem em homem,
e perguntar se a assassinámos
ou se a mataram os outros,
se foram os nossos inimigos
ou o nosso amor o assassino.
Porque a verdade já morreu
e agora podemos nós ser justos.

Antes devíamos lutar
com armas de calibre escuro
e por ferir-nos esquecemos
qual era o fim da nossa luta.

Nunca se soube de quem era
o sangue que nos envolvia,
acusamos outros sem cessar,
sem cessar fomos acusados,
eles sofreram e sofremos,
e depois de eles terem ganho
e termos ganho nós também
a verdade tinha morrido
de antiguidade ou violência.
Não há nada a fazer agora:
todos perdemos a batalha.

Por isso penso que talvez
por fim pudéssemos ser justos
ou por fim pudéssemos ser:
temos este último minuto
e depois mil anos de glória
para não ser e não voltar.

Pablo Neruda,"Memorial de la Isla Negra",1964
(tradução: José Bento)

Miguel Torga


NÃO TENHO CERTEZAS

Não,não tenho certezas.
Se era esse encanto que vos atraía,
Deixai-me só nesta melancolia
De baixo,aberto e liso descampado.
Quero viver,quero morrer,e quero
Que ao fim a soma seja um grande zero
Do tamanho da ardósia...e apagado

Mas são desejos da fisiologia...
Vagas aspirações do dia-a-dia
Duma bilha de barro
Que não vale o cigarro
Que se fuma.
Não,não tenho certezas;
Tenho bruma.

Miguel Torga
(S.Martinho de Anta,1 de Outubro de 1949)

Miguel Torga


Exercício Espiritual

Ouço-os de todo o lado.
Eu é que sou assim,
Eu é que sou assado,
Eu é que sou o anjo revoltado,
Eu é que não tenho santidade...

Quando, afinal, ninguém
Põe nos ombros a capa da humildade,
E vem.

Miguel Torga
(Leiria,19 de Novembro de 1939)

sábado, 20 de março de 2010

José Carlos Ary dos Santos



Queixa e imprecações dum condenado à morte

Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.

Passo a passo os encontro no caminho
Que os deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram.
Com angústia e com lama.

Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.

Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.

Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu quem me corto a mim mesmo o pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.

Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.

Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.

Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.

Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
de serem inúteis e ficarem vivos.

José Carlos Ary dos Santos

José Miguel Silva



A PORTUGUESA

De criadores de cabras e de naus
a bisonhos fabricantes de badalos
para sinos de betume, caro Georges,

anda ver o meu país de gazeteiros,
entre o pau que vai e vem,
infaustos foliões, de costas para o mar.

Anda ver estes Maneis, dobrados de avidez,
os dedos apertados por volantes suicidas,
abolidos entre fados, manivelas, promoções.

À porrada que lhes dão chamam-lhe futuro,
temem mais os livros do que a morte de um irmão
e colocam a cabeça mais a jeito do carrasco.

Das Marias só te conto a mania do verniz,
os derrames de perfume no altar da pequenez,
a vida cambiada pelo crédito de gritos.

Anda, caro Georges, anda ver e depois diz-me
se o pior da alma humana
vem ou não à superfície, como lodo,

quando séculos de pez e abulia são bulidos
por correntes de paixões bonificadas,
no caseiro leva-e-traz de catilinas ambições,

de razões inoculadas pelo gosto de morrer
cada dia um poucochinho.

José Miguel Silva
(in "Ulisses já não mora aqui")

Álvaro de Campos


Quando Olho para Mim não Me Percebo

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos, in "Poemas"

José Manuel Mendes


Poema

estes homens
abrem as portas
do sol nascente

conhecem os íntimos latejos
da cal as soltas águas
os fermentos as uvas
os cílios discretos do pão

amam as urzes e as fontes
o suor dos fenos
a febre moira de um corpo
de mulher

estes homens
partem a pedra
com martelos de solidão
(os olhos abismados
nos goivos
da lonjura)

erguem as paredes
as janelas crepusculares
as esfaimadas antenas das cidades:
céu de cimento; baba remota
do cansaço

estes homens
tamisam as cores; viajam nos navios
pescam no cisco as pérolas
do vidro
são garimpeiros
de uma esponja
de coral

moldam nas forjas
as sílabas secretas
do ferro
afeiçoam os seixos e o linho
o bafo marítimo
das palavras

estes homens
dizem casa com dezembro
nas veias
ternura com a sede de uma seara
grávida
assobiam comovidos contra as sombras
trazem na algibeira
o trevo rugoso das cantigas

estes homens
guardadores de cabras
e de mágoas
de espantos e revoltas
seres emigrantes
contrabandistas
soldados andarilhos do mar
carabineiros da má sorte
trepadores das sete colinas
operários
azeitoneiros
ratinhos
levantam por maio
os cantis do lume: voz de musgo
concha entreaberta

estes homens
(pátria viva; horizonte
de prata
à flor da bruma)
modelam nos andaimes
do tempo
o oiro (medular)da
liberdade

José Manuel Mendes
(Os Dias do Trigo,1980)

José Carlos Ary dos Santos


Brevíssima Antologia da Poesia Com Certeza


Morramos todos por isso
mais por isto e por aquilo:
no açougue do touriço
a poesia morre ao quilo.

Carne gorda carne magra
raramente entremeada
com açorda com vinagre
raras vezes com mostarda
cheira mal diz a comadre
cheira bem fareja o frade
e logo responde o padre
em tom de falso derriço:
Morramos todos por isso
atados como o chouriço!

Só a textilpoesia
nesta meada das letras
muitas vezes desenfia
um colar de contas pretas:
Dona Ernesta vai à missa
toda bordada a missanga;
faz poemas com alpista
tira fonemas da manga
e devotada e artista
diz em tom de lenga-lenga
a oração concretista
da melhor raça podenga:
Deuspeus paipai é quepe
estes poemas fezpez:
-Melo e Caspa faz poemas
como quem tem dores nos pés.

Diz o Alexandre O'Neill
que às vezes lhe falta um til.
Ora ponha-o na cabeça
para ver como se acaba
o que depressa começa
quando a chuvada desaba!
Mas se não fosse o O'Neill
Portugal não tinha Abril.
- Ai meu adeus pequenez
o que será deste mês
se nos não chove de vez?
Bem choveu. Ele que fez?
Tropeçou-nos de ternura
a todos como bem quis.
Em Lisboa amor procura
Alexandre Português
que é gaivota e não o diz.

Já o mesmo não direi
- que me desculpe o Pacheco -
de dona-fiama-irei-
-ao-fundo-do-mar-a-seco.

Descobriu monstros marinhos.
É certo.Mas foi por eles
que errando pelos caminhos
ficou cecília mais reles.

Vila do Conde é maior
que todo o fundo do mar
e o Zé Régio é o melhor
descobridor a cantar.
Se a poesia é uma ostra
em Portalegre cidade
acha a pérola quem mostra
a invenção da verdade.
Na varanda do suor
em tristalegre saudade
José Régio fez um filho
que lhe nasceu por amor
e já de maior idade.

Também Natália é parida
do parto de suas dores
e faz poemas que dançam
toucados de mosto e flores.

Natália ninfa nascida
na ilha de seus amores
quando Camões lhe deu vida
por outros descobridores.

Sei bem que tal não agrada
a Dom Frei Gastão da Cruz
que só não é agostinho
por falta de gás e luz.

Mas um poeta mesquinho
a própria água reduz
quando mija em vez de vinho
desperdícios de alcatruz.
- Pois que mije a toda a hora
e que vá puxando à nora...
Mas há coisas que se puxam
que não podemos saber
coisas que nascem estrebucham
antes de alguém as dizer:
Viva o Zé Gomes Ferreira
quando inventa uma roseira.
Viva o Manuel da Fonseca
quando nos fala da seca
e viva Miguel que outorga
ar livre mesmo que morda.

E tu e tu que me pões
um mago dentro da cama
filho do pai de Camões
Mário de rosas e lama
Cesariny Vasconcelos
nomes que a choldra não grama
porque tu não vais com eles
e ficas em verde rama
tocando no bolso esquerdo
os nomes de quem te chama.

Só é poeta quem perde
o corpo de quem mais ama
-- Isto o dirá em verdade
o grande Eugénio de Andrade.

José Carlos Ary dos Santos
(Resumo,1972)

Manuel Alegre


TROVA DO VENTO QUE PASSA

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio — é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não

Manuel Alegre
(Praça da Canção,1965)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Mário Dionísio


O Maior Poema


Como os outros
como os outros
sem nada mais que os outros
sentindo como os outros
pensando como os outros
e sofrendo e lutando
e morrendo
como os outros

Mário Dionísio
(As Solicitações e Emboscadas,-1945)

António Gedeâo


Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão

Fernanda Botelho



Mansidão

Quando me chamam, vou logo.
E não reajo. Disfarço.
E a cada ultraje, renasço
com as artérias em fogo.

Não falo o meu espanto.
Quando recuso, não digo.
(Conservo as vozes comigo
a elaborar o meu canto.)

E com maneiras discretas,
vou criando o movimento
que hei-de entregar, a seu tempo,
às minhas asas quietas.

Fernanda Botelho
Do livro "Távola Redonda" fasc.14 (1952)

quinta-feira, 18 de março de 2010

Fernando Guedes


NOCTURNO

Pensar em ti,Amor,
é como resolver,
na noite imensa,
uma equação de estrelas
num céu de luar.

Pensar em ti,Amor,
é torturar na alma
uma emoção astral
-brilho da Espada ou clarão na Opala-
de abismos,de serras e de Mar.

Fernando Guedes
Do livro "Esfera"(1948)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Joan Manuel Serrat / Miguel Hernandez

Joan Manuel Serrat / António Machado

Luís Veiga Leitão


CORREDOR

Cem metros à sombra — temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.

Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de paz.

E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.

E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha dos railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes no cais.

E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.

Luís Veiga Leitão

Do livro "Noite de Pedra"(1955)

José Terra


TERRA IMPORTANTE

De resto, o que importa é não trair
a luz que nós buscamos e cintila
em nosso ouvido num rumor longínquo,
longe das fontes de angústia em que bebemos.

Não é a palavra amor que nos importa,
é o sorriso inacessível dentro
da carapaça do ser que se defende,
o rio oculto sob o tempo e o espaço.

É esse rumor subterrâneo e lúcido,
o núcleo que arde para além
de tudo o que detectam nossos dedos.

É esse rosto desfigurado e súbito
que irrompe, que sobre nós explode,
é esse fogo onde se elide a morte.

José Terra, "Espelho do Invisível", 1959

Egito Gonçalves


O PROGRESSO DAS CIÊNCIAS


Conseguiram encerrar o vento,
retirar a pouco e pouco o ar
e - maravilha! - o povo
resiste ainda e vive.

A asfixia é lenta e os que morrem
parecem ir de morte natural.

Hoje porém os sábios consideram
enganosa essa fórmula que reduz
o paciente à condição de peixe triste.

Pois no repouso fictício a onda
aguarda o luar da maré cheia.

Nas manhãs da terra
as manchas de sangue ganham punhos;
a viva carne cobre o inesperado.


Egito Gonçalves

Do livro "Os Arquivos do Silêncio"(1963)

Egito Gonçalves


O VALOR DAS PALAVRAS

Penso Liberdade, Esperança...
Palavras que possuem tua cor,
teu ritmo. Identifico-as
com o teu rosto. Nelas
me reconheço.

E sou livre
e espero.

Penso palavras que erguem
a claridade. Respiro-as
com o vento, o cheiro da resina.
Macias pestanas que auxiliam
a acordar sem fadiga. Laranjas
que eliminam a sede.

Sorris-me
e acordo.

Do livro "Memórias de Setembro"(1960)

terça-feira, 16 de março de 2010

Natália Correia / José Mário Branco

Natália Correia morreu a 16 de Março de 1993

Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

Natália Correia
("O nosso Cancioneiro")

domingo, 14 de março de 2010

José Gomes Ferreira


QUERO VOAR

Quero voar
-mas saem da lama
garras de chão
que me prendem os tornozelos.

Quero morrer
-mas descem das nuvens
braços de angústia
que me seguram pelos cabelos.

E assim suspenso
no clamor da tempestade
como um saco de problemas
-tapo os olhos com as lágrimas
para não ver as algemas...

(Mas qualquer balouçar ao vento me parece Liberdade.)


José Gomes Ferreira

Karl Marx morreu a 14 de Março de 1883

Albert Einstein nasceu a 14 de Março de 1879

Jean Ferrat

Jean Ferrat (26/12/1930 - 13/03/2010) canta Louis Aragon

Jean Ferrat morreu ontem, 13 de Março,aos 79 Anos.

Cantor rebelde e militante comunista. Muitas das suas canções foram censuradas como Potemkine(1965) feita em memória dos marinheiros do couraçado do Mar Negro.

sábado, 13 de março de 2010

Hazmat Modine "Yesterdey Morning"

Léo Ferré - Quartier Latin -

António Botto


Poema

Conversando a sós contigo,
Desfruto o prazer imenso
De não pensar no que digo
E de dizer o que penso.

E mais uma vez
Afirmo
Sem receio de que seja desmentido:
-A maior felicidade
É ser-se compreendido.

António Botto
(As canções de António Botto)

António Botto


Poema


A Fatalidade,
Várias vezes,
No meu caminho aparece;
Mas,
Não consegue perturbar
A minha serenidade.

Somente,
No meu olhar,
Poisa e fica mais tristeza.
Não me revolto,
Nem desespero.

-Quero morrer em beleza.

António Botto
(As canções de António Botto)

Eugénio de Andrade


CANÇÃO BREVE


Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade



Retrato

No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma!

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade


OUTRA CANÇÃO

Com as quatro folhas
dos trevos do verão
farei uma casa
sem portas sem janela
para te esconder,
farei um rio
de sombra onde dormir
contigo nos olhos
para não morrer.

Eugénio de Andrade.

quarta-feira, 10 de março de 2010

José Afonso


Coro dos Caídos

Cantai bichos da treva e da aparência
Na absolvição por incontinência
Cantai cantai no pino do inferno
Em Janeiro ou em Maio é sempre cedo
Cantai cardumes da guerra e da agonia
Neste areal onde não nasce o dia

Cantai cantai melancolias serenas
Como trigo da moda nas verbenas
Canta cantai guisos doidos dos sinos
Os vossos salmos de embalar meninos
Cantai bichos da treva e da opulência
A vossa vil e vã magnificência

Cantai os vossos tronos e impérios
Sobre os degredos sobre os cemitérios
Cantai cantai ó torpes madrugadas
As clavas os clarins e as espadas
Cantai nos matadouros nas trincheiras
As armas os pendões e as bandeiras

Cantai cantai que o ódio já não cansa
Com palavras de amor e de bonança
Dançai ó Parcas vossa negra festa
Sobre a planície em redor que o ar empesta
Cantai ó corvos pela noite fora
Neste areal onde não nasce a aurora

José Afonso

Joan Baez está esta noite a cantar em Lisboa (Coliseu de Lisboa)


Eugénio de Andrade



O SAL DA LÍNGUA

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade


A POESIA NÃO VAI

A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do Verão.

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade.


Poema

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mulher-Maio de Ary dos Santos


MULHER-MAIO

Bom dia, minha amiga, digo em Maio
és uma rosa à beira de um tractor
neste campo de Abril onde não caio
a nossa sementeira já deu flor.

Bom dia minha amiga, eu sou um gaio
um pássaro liberto pela dor
tu és a companheira donde saio
mais limpo de mim próprio mais amor.

Bom dia meu amor estamos primeiro
neste tempo de Maio a tempo inteiro,
contra o tempo do ódio e do terror.

Se tu és camponesa eu sou mineiro.
Se carregas no ventre um pioneiro
Dentro de ti eu fui trabalhador.

José Carlos Ary dos Santos

Mulheres de Pablo Neruda



MULHERES

Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo em que acreditam.
Elas levantam-se para uma injustiça.
Elas não levam "não" como resposta
quando acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos
para suas crianças poderem tê-los.
Elas vão ao médico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prémios.
Elas ficam contentes quando ouvem
sobre um aniversário ou um novo casamento.

Pablo Neruda

quarta-feira, 3 de março de 2010

segunda-feira, 1 de março de 2010

Hazmat Modine "Bahmut"

Carlos de Oliveira


CORAÇÃO

Canta na noite,sentimento da terra,
ou morreste,flor estranha?
Há tanto que chove e nós sem lenha,
sem paz e sem guerra.

Há tanto.E eu sei lá bem
se ainda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.

Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.

Carlos de Oliveira
(Mãe Pobre,1945)

Natércia Freire


LIBERTA EM PEDRA

Livre,liberta em pedra.
Até onde couber
tudo que é dor maior,
por dentro da harmonia jacente,
aguda, fria, atroz,
de cada dia.

Não importam feições,
curvas de seios e ancas,
pés erectos à luz
e brancas, brancas, brancas,
as mãos.

Importa a liberdade
de não ceder à vida,
um segundo sequer.

Ser de pedra por fora
e só por dentro ser.

-Falavas? Não ouvi.
-Beijavas? Não senti.
Morreram? Ah! Morri, morri, morri!
Livre, liberta em pedra,
voltada para a luz
e para o mar azul
e para o mar revolto...

E fugir pela noite
sem corpo, nem dinheiro,
para ler os meus santos
e os meus aventureiros,
(para ser dos meus santos,
dos meus aventureiros)
filósofos e nautas,
de tantos nevoeiros.

Entre o peso das salas,
da música concreta,
de espantalhos de deuses,
que fará o Poeta?

Natércia Freire
(Liberta em Pedra,1964)

Frederic Chopin nasceu a 1 de Março de 1810.

Vinícius de Morais "Soneto da Fidelidade"


Para José Sócrates e Alberto João Jardim


SONETO da FEDILIDADE

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Morais